17/07/2003

Noite de hotel

Desta vez já estávamos à espera há semanas. Tanto eu como as minhas irmãs somos pacientes e sabemos esperar. O tempo tem para nós pouco ou nenhum significado. Vimo-los entrar sem surpresa ou sobressalto. A porta rangeu, olhamos -como de costume, sem ser vistas- para os dois estrangeiros que pousavam as malas no quarto.

Eu achei que faziam um bonito casal. Nem todas as irmãs concordaram. Ele, alto e loiro, de cabelo comprido e corpo atlético, foi unanimemente considerado atraente. Mas de ti nem todas gostaram à primeira vista. Umas diziam que eras baixa, que parecias apagada ao lado dele, outras que o cabelo curto, sei lá. Tretas, ciúmes tontos.

O quarto era decrépito. As tábuas de madeira do chão estavam podres e esburacadas, as paredes com a pintura deslavada, e o tecto coberto por enormes manchas de humidade. Os vidros das janelas tão sujos que não deixavam ver para o exterior. Ainda bem, porque a vista das traseiras do hotel não é de todo das mais românticas.

Vimos o vosso olhar horrorizado com a sujidade e o abandono do quarto. Mas não havia outra opção. Vocês sabiam-no e nós também. Era o único hotel aberto àquela hora na cidade. Nunca ninguém vem aqui parar por vontade própria, mas quando o autocarro chega a meio da noite, é um alívio ver a luz acesa ao fundo da rua, e todos acabam por vir cá ter, mais cedo ou mais tarde. Quando pousam as malas já não têm coragem de voltar lá para fora, para a noite. Dominam o medo, a repulsa, e tentam animar-se pensando que depois de um bom duche tudo parecerá menos sórdido. Ilusão. Não parece.

Vimo-los tentar extrair água das torneiras, e a vossa cara quando o líquido castanho e ferrugento pingou brevemente contra o esmalte descascado da banheira. Do outro lado do espelho observei a cara dele, e quando se aproximou mais senti o calor do seu hálito, quase lhe pude tocar nos lábios. Fechou os olhos e suspirou, como se me tivesse pressentido. Teve um arrepio e afastou-se bruscamente do espelho.

Quando se despiu ficamos todas em silêncio, gulosas no meio da nossa escuridão. Vimos como te sentavas na cama, como apalpavas desconfiada o colchão. Esperámos que ele adormecesse. Demoraste a apagar a luz, olhavas à tua volta como se pressentisses alguma coisa, e cheguei a pensar que talvez tu... mas com um suspiro deitaste-te, por fim. Ouvimos a respiração pausada dele, e a tua assustada, quase ofegante. Era normal.

Passámos ao de leve por cima dele, tocando-lhe primeiro os olhos, a boca, o cabelo, depois os ombros, o peito, o ventre. Era tão bonito que nos dava quase pena. Depois chegámos a ti. Ele nem acordou. Nunca acordam antes do tempo, felizmente. Depois é terrível. Quando despertam olham à volta, buscam desorientados, chamam. Não obtêm resposta, claro. Assustam-se. Levantam-se, procuram, desesperam-se. Às vezes choram. É incrível o que gritam quando compreendem por fim que lhes levamos a mulher.

© Claudia Clemente

M. Claudia Clemente è nata Roma nel 1967. Nel 1997 fonda insieme a Michele Molé Nemesi studio.
Ricercatore presso la facoltà di Architettura dell'Università degli Studi di Roma "La Sapienza", svolge attività didattica presso il Corso di Laurea in Disegno Industriale.
VALIA A PENA TRADUZIR
Sábado, 05 de Julho de 2003
Desidério Murcho
Público

65 Milhões de Anos Depois

Em 1986 a Gradiva publicou um livro inesquecível, numa tradução e edição de luxo: "A Oeste do Éden", de Harry Harrison. Esgotado há anos, fez legiões de leitores fiéis. Mas muitos leitores desconhecem que só leram o primeiro tomo de uma trilogia. Agora que Potters e Tolkiens parecem ter reactivado o interesse dos editores pela literatura de fantasia, esta é uma obra-prima que não pode ficar esquecida. Como aliás não o ficou nos EUA e no Reino Unido, em que a iBooks deitou mãos à reedição, com novos prefácios do autor.

Há 65 milhões de anos um meteorito chocou com a Terra. Resultado: a extinção de quase todas as formas de vida, algumas das quais muitíssimo bem adaptadas e que existiam desde tempos imemoriais - os dinossáurios. Mas como seria o mundo, "hoje", se o tal meteorito nunca tivesse chocado com a Terra? É esta a premissa da trilogia de Harrison. Mas não se trata apenas de uma premissa esperta, que depois é mal desenvolvida e ainda pior narrada. Na verdade, o desenvolvimento da ideia, a construção de uma sociedade de répteis inteligentes e, sobretudo, a segurança narrativa, fazem desta obra um clássico moderno - e isso nota-se desde a primeira frase. Não menos impressionante é o realismo antropológico na descrição das primitivas sociedades humanas, que entretanto acabaram por se desenvolver em regiões gélidas onde os dinossáurios não habitam. Tratando-se de sociedades na idade da pedra, entram em rota de colisão com a sociedade muitíssimo mais desenvolvida dos répteis, que dominam a biologia e outras ciências.

O primeiro volume termina com a destruição de uma das cidades dos répteis, comandada pelos seres humanos. Mas trata-se de uma pequena vitória numa batalha de uma guerra épica sem futuro. Afinal, os répteis têm tudo: conhecimento, tecnologia e ciência, e povoam todo o mundo, à excepção das Américas. Os seres humanos parecem condenados: são pequenos grupos dispersos e ignorantes, e a maior parte nem sabe da tragédia que lhes está reservada quando os répteis decidem extinguir o género humano. Esta desproporção de forças é um dos fascínios da obra.

No segundo volume torna-se evidente que a vitória do primeiro é destituída de significado. Os seres humanos são forçados a abandonar a cidade destruída e perseguidos sem piedade quase até à extinção final. Só Kerrick, o inesquecível herói acidental, que conhece os répteis porque foi criado por eles, consegue resolver a situação - viajando até ao Velho Mundo, para conferenciar com os líderes dos répteis. O terceiro volume vê o estabelecimento de uma paz precária entre as espécies. As suas dificuldades, todavia, são evidentes e Kerrick começa a suspeitar da possibilidade de resolver definitivamente a situação: o ódio entre as espécies é visceral.

Qualquer breve sinopse dos traços principais desta trilogia é mais enganadora do que outra coisa. Pois a grande riqueza está na precisão narrativa, no realismo das personagens e, sobretudo, na descoberta de um mundo tão rico quanto o de Tolkien - e sem magias tontas. Grande parte da narrativa lê-se com a mesma curiosidade com que se lê uma obra de divulgação científica. O autor rodeou-se dos melhores especialistas, incluindo linguistas, que criaram os rudimentos de várias línguas diferentes para as diferentes tribos de humanos e para os répteis. Uma leitura a que se regressa constantemente como quem busca conforto num porto de abrigo.

West of Eden / Winter in Eden / Return to Eden
AUTOR Harry Harrison
EDITOR iBooks
3 vols, 484 / 401 / 353 págs., 9,99 libras cada
http://www.ibooksinc.com